sexta-feira, 8 de maio de 2015

aniversário.

Mais um bolo de padaria que o filho Arnaldo comprou sem muito zelo. Apenas para cumprir com o dever da prole de cuidar de quem cuidou...
As bexigas cheias na parede branca, coloriam aquela sala que já não tinha mais personalidade, mas mantinha a dignidade que é a única coisa que fica com o passar dos dias.
Hoje era dia de festa. O rádio tocava suas músicas, a mesa estava enfeitada, os docinhos estavam dispostos cuidadosamente: brigadeiros e beijinhos. Os favoritos dela...
A "vó Jô", ou a mãe "Joana" como era chamada pelos três, estava comemorando mais um ano, era preciso festejar.

Colocou seu colar de pérolas gastas, o sapato de festa e o conjunto azul marinho favorito.
Procurou seu anel ... onde estava?
A boca não pedia mais vaidades mas insistiu em colorir os lábios de carmim...uma ponta de ousadia insistia em permanecer... carregava ainda um velho rubor na face e na pele o perfume de alfazema. Os olhos desbotados, falavam o que a boca não tinha mais vontade de contar. Vivera muito até ali o silêncio gritava por si.

Na sala de estar com os netos correndo, as noras trocando receitas e os filhos contando vantagens, Joana pensava em tudo que vivera até ali...
O que tinha sobrado? O que tinha  sobrado de toda aquela energia, aquela personalidade forte e sua teimosia de acreditar que as coisas seriam diferentes que os filhos estavam lá por amor e não por obrigação?
A velhice traz completude. Uma paz que inquieta e pacifica. Não tinha mais vontade de brigar, não tinha mais vontade de mentir para agradar... queria respirar... mas como era difícil.

O barulho festivo e as coxinhas que Arnaldo trazia davam ânsia...
Cora, a nora loira  e estridente mostrava com satisfação as velas do bolo. 8.7.

Oitenta e sete anos... oitenta e sete... vivera muito Dona Joana.... "nossa guerreira".

Joana olhava sem afetação para as velas... e não estava mais ali.
Lembrou do marido Pablo que morrera ano passado... dos partos, da perda dos pais, da irmã que não falava mais com ela.Lembrou do primeiro dia que viu o mar e quando fugiu de casa para roubar goiabas...
A vida era melhor que aquele bolo de padaria... mas os netos eram melhores que todas as goiabas doces que furtou escondida.
O mundo era grande... e nele cabiam mais que oitenta e sete anos. Joana sabia... e assoprou com valentia as velas que bruxuleavam nos seus olhos verdes.

Viveria até o próximo bolo? não sabia... mas buscaria dentro de si a gratidão pelos dias bons, pelas chuvas, pelos resfriados, pelos beijos de amor.
Apesar de tudo ela sabia: a vida podia ser mais doce que qualquer bolo de padaria... e riu silenciosamente a aniversariante...

(.)
 

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